A ideia de uma cidade autoadministrada parece ter sido tirada da ficção científica, mas é uma possibilidade cada vez mais real.
A desconfiança nos governantes levou cidadãos e grandes conglomerados de tecnologia a buscar alternativas.
Na era das cidades inteligentes, algoritmos e inteligência artificial prometem gerenciar tráfego, segurança e serviços públicos com uma precisão que os humanos não conseguiram. No entanto, essa automação acarreta riscos: o que acontece quando a humanidade é deixada para trás na tomada de decisões? Podemos confiar que os algoritmos funcionarão para o benefício de todos e não apenas daqueles que os programam?
A automação da energia: uma velha ambição com novas tecnologias
Por: Gabriel E. Levy B.
A ideia de que uma cidade pode funcionar sem intervenção humana não é nova. Das utopias urbanas do século 19 aos mais recentes projetos de cidades inteligentes, a automação sempre foi uma promessa. Filósofos como Thomas More imaginaram sociedades onde a ordem perfeita era possível, e tecnólogos do século XX, como Norbert Wiener, o pai da cibernética, sonharam com sistemas de controle automatizados que otimizariam a vida humana.
Mas a diferença hoje é que a tecnologia torna isso possível.
Em países como China e Cingapura, as cidades inteligentes já deram passos em direção à autoadministração com redes de sensores que regulam tudo, desde o tráfego até o consumo de energia em tempo real.
Empresas como Google e Amazon desenvolveram modelos urbanos em que os dados substituem as decisões políticas tradicionais.
Toronto foi um experimento fracassado a esse respeito: o projeto Sidewalk Labs do Google visava criar um bairro inteligente gerenciado por algoritmos, mas falhou devido a preocupações com privacidade e falta de regulamentação democrática.
Embora a automação prometa eficiência, ela também levanta a questão central: quem controla a cidade quando o governo está programando o código?
Quando os algoritmos decidem por nós
As cidades inteligentes estão avançando com uma premissa básica: os dados são a chave para melhorar a qualidade de vida. Os algoritmos de inteligência artificial podem analisar informações em tempo real e tomar decisões mais rapidamente e com menos margem de erro do que os humanos.
Isso se traduz em tráfego tranquilo, sistemas de energia eficientes e respostas imediatas a emergências.
Mas há um problema fundamental: os algoritmos não são neutros. Eles são projetados por empresas e governos com interesse próprio. Shoshana Zuboff, autora de The Age of Surveillance Capitalism, adverte que, nas cidades automatizadas, aqueles que lidam com dados não apenas regulam o tráfego ou a segurança, mas também têm acesso total à vida privada dos cidadãos.
Em uma cidade autogerenciada por inteligência artificial, cada movimento é registrado, analisado e usado para prever comportamentos.
Outro risco é o viés algorítmico. Cathy O’Neil, em seu livro Weapons of Math Destruction, explica como os algoritmos podem reproduzir e amplificar as desigualdades sociais. Em um sistema de vigilância automatizado, por exemplo, bairros com mais denúncias de crimes podem receber maior atenção policial, mesmo que essas denúncias sejam influenciadas por preconceito racial ou de classe.
Assim, uma cidade autoadministrada poderia consolidar as desigualdades em vez de eliminá-las.
Além disso, há um dilema moral: se um algoritmo toma uma decisão errada, quem é o responsável? Em 2018, um veículo autônomo do Uber atingiu um pedestre no Arizona porque o sistema não o identificou como uma ameaça.
Se no futuro uma cidade totalmente automatizada cometer erros semelhantes, quem será responsabilizado?
Casos em que a automação substitui governos
Algumas cidades deram passos concretos em direção à autoadministração tecnológica.
Songdo, na Coreia do Sul, é um exemplo de cidade inteligente onde o tráfego, o consumo de energia e a coleta de lixo são gerenciados por inteligência artificial. No entanto, apesar de seu design futurista, os cidadãos não abraçaram a cidade como esperado: a falta de interação humana e a hiperregulação algorítmica a transformaram em um espaço frio e impessoal.
Outro caso é o de Shenzhen, na China, onde os sistemas de reconhecimento facial e vigilância determinam o comportamento do cidadão.
Câmeras com inteligência artificial detectam violações e emitem multas automáticas, enquanto um sistema de crédito social decide quem pode acessar benefícios públicos. Embora eficiente, esse modelo tem sido criticado por corroer a privacidade e os direitos individuais.
Na Europa, Amsterdã implementou algoritmos para gerenciar os serviços públicos de forma mais equitativa. Mas, ao contrário dos modelos asiáticos, incluiu mecanismos de controle democrático que permitem aos cidadãos intervir nas decisões tecnológicas. Este caso demonstra que a automação pode coexistir com a participação cidadã, embora continue sendo um desafio manter o equilíbrio.
O caso mais radical é Neom, a cidade futurista que a Arábia Saudita está construindo no deserto. Projetado para ser gerenciado por inteligência artificial, é apresentado como um modelo de eficiência e sustentabilidade. No entanto, seu planejamento ignora a complexidade social: uma cidade não é apenas infraestrutura, mas também cultura, história e relações humanas.
Em conclusão
As cidades autogeridas oferecem soluções inovadoras, mas também apresentam riscos éticos e políticos. A automação pode tornar os serviços mais eficientes, mas se você remover as decisões humanas do processo, corre o risco de perder seu senso de comunidade e responsabilidade social. Os algoritmos podem gerenciar uma cidade, mas a questão permanece: quem os controla e sob quais valores eles operam? A tecnologia pode melhorar a vida urbana, mas sem supervisão democrática, pode se tornar uma ferramenta de exclusão e vigilância em massa.