Colonização algorítmica e as novas leis da robótica

A promessa de um futuro governado pela inteligência artificial deixou de ser ficção científica e se tornou uma realidade que molda nossas vidas.

 Nesse cenário, Frank Pasquale emite um alerta crucial em seu livro “As Novas Leis da Robótica”: as máquinas não mais apenas executam tarefas mecânicas, mas também influenciam decisões que afetam a saúde, o trabalho e a justiça social.

Das leis de Asimov à nova era da IA

Por: Gabriel E. Levy B.

Isaac Asimov, em suas histórias icônicas sobre robôs, estabeleceu três leis fundamentais que regiam a interação entre humanos e robôs: proteger o ser humano, obedecer ordens e preservar a existência do próprio robô sem violar as duas primeiras. Embora essas leis tenham servido de referência para refletir sobre o papel das máquinas na vida humana, elas foram concebidas em uma época em que a tecnologia não tinha a capacidade ou interferência que tem hoje.

Pasquale, ciente das transformações que a IA e a robótica geraram nas últimas décadas, argumenta que essas regras não são mais suficientes. Sua análise sugere que os avanços tecnológicos estão redefinindo a relação entre humanos e máquinas em campos críticos como medicina, educação, economia e, acima de tudo, ética. A simples proteção física ditada pelas leis de Asimov agora é um terreno insuficiente. O que está em jogo é mais complexo: poder, privacidade, equidade e o próprio tecido social.

Para o autor, a automação chegou a um ponto crítico em que a intervenção humana é indispensável não apenas no design da tecnologia, mas também na forma como decidimos implementá-la na sociedade. Sua proposta de quatro novas leis pretende ser uma estrutura de proteção não apenas física, mas também econômica, política e ética.

Uma proposta para proteger o bem-estar humano

Em sua resenha, Pasquale parte de uma preocupação fundamental: a substituição indiscriminada de humanos por robôs em trabalhos essenciais. Profissões que envolvem cuidados, como medicina ou ensino, não devem ser substituídas pela eficiência fria de uma máquina. A primeira das novas leis estipula que os robôs não devem substituir os humanos nessas áreas críticas. A autora alerta que, quando a empatia e o contato humano são eliminados, o vínculo que sustenta essas profissões é enfraquecido: o cuidado e a interação.

O próximo passo em sua análise nos leva ao emprego. Aqui, Pasquale enfrenta um dos debates mais acalorados da era tecnológica: automação e desemprego. Embora muitas corporações promovam a IA como uma ferramenta para o progresso, Pasquale alerta para os efeitos devastadores que ela pode ter sobre a força de trabalho. Sua segunda lei é clara: robôs e IA devem complementar os humanos, não substituí-los. Nesse sentido, ele propõe uma colaboração na qual a tecnologia é usada para expandir as capacidades humanas e abrir novas oportunidades de trabalho, em vez de destruir empregos sem oferecer alternativas.

Mas para que essa complementaridade seja eficaz, Pasquale introduz uma terceira lei que se concentra na transparência. Atualmente, muitos sistemas de inteligência artificial funcionam como caixas pretas: tomam decisões, mas não nos permitem entendê-las. Essa opacidade não é apenas preocupante em termos de justiça, mas também levanta importantes dilemas éticos. O autor defende que qualquer sistema robótico deve ser compreensível e auditado, para evitar que decisões, desde o diagnóstico médico até a avaliação de crédito, sejam injustas ou tendenciosas sem que ninguém possa explicá-las.

Concentração de poder e desigualdade tecnológica

Um aspecto crucial que Pasquale aborda em seu trabalho é a concentração de poder. A automação, ele argumenta, não está apenas transformando o mercado de trabalho, mas também concentrando riqueza e poder nas mãos de algumas corporações de tecnologia. A quarta lei de sua proposta alerta para esse perigo: os robôs não devem contribuir para agravar a concentração de poder econômico ou político.

Aqui, Pasquale toca em um ponto crítico no debate atual sobre IA e tecnologia: o domínio de gigantes como Google, Amazon e Facebook, que controlam grande parte das inovações e da infraestrutura tecnológica. Essa concentração não apenas limita a concorrência, mas também reforça as desigualdades sociais e econômicas. À medida que essas empresas expandem sua influência, fica evidente o risco de usarem a automação para aumentar seu poder, levando a um ciclo vicioso de desigualdade.

Essa “colonização algorítmica”, como o autor a chama, afeta áreas fundamentais da vida cotidiana, da privacidade à autonomia pessoal. Pasquale critica como, em nome da eficiência, os algoritmos penetraram em nossas vidas de maneiras invisíveis, desde sistemas de vigilância até algoritmos que determinam nosso trabalho ou oportunidades financeiras.

Exemplos reais de colonização algorítmica

Os riscos apontados por Pasquale não são meras especulações futuristas, mas realidades que já afetam milhões de pessoas em todo o mundo. No setor de saúde, por exemplo, sistemas de IA como os usados para diagnosticar doenças demonstraram ter vieses significativos. Um estudo realizado por pesquisadores da Universidade de Stanford descobriu que alguns algoritmos de diagnóstico médico eram racialmente tendenciosos, afetando desproporcionalmente as minorias. Esses sistemas, treinados em dados históricos, perpetuam as desigualdades no acesso à saúde, em vez de corrigi-las.

No local de trabalho, o uso de algoritmos para avaliar funcionários já está alterando a forma como as pessoas são contratadas e demitidas. Empresas como a Amazon implementaram sistemas de rastreamento automatizados para avaliar o desempenho de seus funcionários, o que levou a demissões automáticas sem intervenção humana. Esses exemplos destacam a necessidade de regulamentação, pois a automação sem supervisão humana está levando a decisões injustas e impedindo que os afetados questionem ou apelem dessas decisões.

Finalmente, a vigilância algorítmica nas cidades é outro exemplo de como a IA pode invadir a privacidade. Na China, o uso de câmeras com reconhecimento facial e sistemas de pontuação social está redefinindo o conceito de privacidade e controle estatal. No Ocidente, embora em menor escala, os sistemas de vigilância automatizados também estão ganhando força, levantando preocupações sobre a liberdade individual e os direitos civis.

Uma visão compartilhada por outros autores

A análise de Frank Pasquale sobre a regulamentação da inteligência artificial e da robótica ressoa com as preocupações expressas por outros autores que também exploraram os dilemas éticos e sociais decorrentes da automação.

Por exemplo, Shoshana Zuboff, em seu influente trabalho “The Age of Surveillance Capitalism”, alerta sobre como as grandes corporações de tecnologia usam a IA para extrair dados dos usuários, que são então transformados em previsões comportamentais que alimentam seus modelos de negócios.

Zuboff concorda com Pasquale que essa concentração de poder nas mãos de algumas empresas não apenas mina a privacidade das pessoas, mas também reforça estruturas de poder desiguais que são difíceis de reverter.

Como Pasquale, Zuboff argumenta que a transparência e a regulamentação são essenciais para evitar que a tecnologia seja explorada em detrimento do bem-estar coletivo.

Por outro lado, o pesquisador e teórico Nick Bostrom, em seu livro “Superinteligência: Caminhos, Perigos, Estratégias”, aborda os riscos existenciais representados pelo avanço descontrolado da inteligência artificial.

Enquanto Bostrom se concentra nos perigos da IA superinteligente que pode superar as capacidades humanas, ele compartilha com Pasquale a preocupação de que a falta de regulamentações eficazes possa levar a resultados catastróficos. Bostrom argumenta que a IA deve ser projetada e monitorada com controles éticos rígidos, o que se alinha com a insistência de Pasquale de que as decisões de sistemas automatizados devem ser transparentes e auditáveis.

Finalmente, Cathy O’Neil, em “Weapons of Math Destruction”, oferece uma crítica contundente de como os algoritmos, quando não regulamentados ou compreendidos, podem perpetuar injustiças sociais e aumentar as desigualdades. Como Pasquale, O’Neil aponta que esses sistemas, usados em setores como educação, emprego e crédito, são muitas vezes caixas pretas opacas que prejudicam as comunidades mais vulneráveis. Ambas as visões concordam com a necessidade urgente de estabelecer estruturas legais que protejam os cidadãos e garantam que a tecnologia seja usada de forma justa e equitativa.

Em conclusão, “As Novas Leis da Robótica” de Frank Pasquale nos oferece uma estrutura crítica para entender e regular a interação entre humanos e máquinas na era da inteligência artificial. Suas propostas, que vão além da simples proteção física, buscam garantir que a tecnologia seja uma ferramenta para o progresso e a equidade, não para a concentração de poder ou desigualdade. Nesse sentido, Pasquale nos convida a refletir sobre o tipo de futuro que queremos construir.