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As cidades inteligentes prometem eficiência, sustentabilidade e um nível de conectividade sem precedentes.
No entanto, seu crescimento deu origem a um paradoxo perturbador: quanto mais a tecnologia é implementada para melhorar a vida urbana, mais vulneráveis os cidadãos se tornam à vigilância, ao roubo de dados e ao uso indevido de suas informações.
A miragem da eficiência tecnológica
Por: Gabriel E. Levy B.
As cidades têm sido laboratórios de inovação desde a sua origem.
Na Grécia clássica, a ágora serviu como um espaço para a troca de ideias, enquanto no Renascimento, as ruas de Florença tornaram-se nós de comércio e cultura.
Hoje, as metrópoles estão caminhando para a digitalização total com sistemas de sensores, câmeras de vigilância, redes 5G e algoritmos preditivos que monitoram tudo, desde o tráfego até os padrões de consumo.
O conceito de cidade inteligente começou a tomar forma na década de 1990, quando grandes corporações de tecnologia, como IBM e Cisco, viram a urbanização como um terreno fértil para a integração de dados.
Em 2008, a IBM lançou sua iniciativa “Smarter Cities”, promovendo o uso de Big Data para otimizar serviços urbanos.
Posteriormente, governos de todo o mundo adotaram esse modelo, de Cingapura a Barcelona, promovendo projetos que usam inteligência artificial e análise de dados para melhorar a mobilidade, a segurança e a gestão de recursos.
No entanto, esse desenvolvimento gerou um novo tipo de preocupação: quem controla esses dados? Para que fins eles são usados? Quais são os limites da vigilância estatal e corporativa? Como adverte o filósofo Byung-Chul Han, a sociedade contemporânea passou de um modelo de disciplina para um de transparência absoluta, onde os cidadãos, sem perceber, oferecem suas informações em troca de conforto e eficiência.
Cidades que policiam: a linha tênue entre segurança e controle
O desenvolvimento de cidades inteligentes foi acompanhado por um boom no uso de tecnologias de vigilância em massa.
Na China, o sistema de crédito social, baseado na coleta e análise de dados dos cidadãos, gerou um debate global sobre os limites do controle estatal. As ruas de Pequim e Xangai estão equipadas com câmeras de reconhecimento facial capazes de identificar indivíduos em questão de segundos, enquanto em cidades como Londres e Nova York, o uso de tecnologias semelhantes tem sido justificado como uma ferramenta para combater o crime.
O problema é que essas tecnologias não apenas coletam dados sobre atividades ilícitas, mas também sobre hábitos diários, preferências de consumo e relacionamentos interpessoais. De acordo com Shoshana Zuboff, autora de The Age of Surveillance Capitalism, os dados não são apenas registros da realidade, mas se tornaram uma mercadoria explorada por empresas e governos para fins comerciais e políticos.
Esse modelo de mineração de dados, argumenta Zuboff, representa um risco à autonomia individual e à própria democracia.
Em 2013, Edward Snowden revelou a existência do PRISM, um programa de vigilância global administrado pela NSA, que coletou informações de milhões de cidadãos sem o consentimento deles.
Embora esses programas de espionagem do governo tenham provocado indignação global, pouco mudou desde então. Hoje, as cidades inteligentes multiplicaram a quantidade de dados disponíveis para análise, muitas vezes sem regulamentações claras sobre seu armazenamento e uso.
O dilema regulatório: quem protege o cidadão digital?
Apesar do crescimento exponencial do Big Data em ambientes urbanos, a legislação sobre seu uso permanece difusa e desigual no mundo. A União Europeia assumiu a liderança com o Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR), que obriga empresas e governos a garantir o direito dos cidadãos de controlar suas informações pessoais. No entanto, em outras regiões, como América Latina e Ásia, a regulamentação está progredindo mais lentamente, permitindo que empresas privadas e governos acumulem dados sem mecanismos eficazes de supervisão.
Um exemplo claro dessa falta de regulamentação é o caso da Sidewalk Labs, subsidiária do Google que em 2017 propôs transformar um distrito de Toronto em uma cidade inteligente com base na coleta massiva de dados urbanos.
O projeto foi cancelado em 2020 após uma onda de críticas pela falta de transparência no tratamento das informações dos cidadãos.
O caso refletiu temores de que as empresas de tecnologia atuem como estados paralelos, gerenciando a infraestrutura urbana sem uma responsabilidade clara.
A falta de regulamentação unificada deixa os cidadãos em situação de vulnerabilidade. Embora os avanços tecnológicos ofereçam melhorias no transporte, saúde e segurança, eles também abrem as portas para abusos de poder.
A filósofa Judith Butler adverte que o controle da informação não é apenas uma questão de privacidade, mas de poder político: aqueles que possuem os dados têm a capacidade de influenciar narrativas públicas, tomada de decisão e comportamento social.
Exemplos de cidades inteligentes e seus desafios
O caso de Cingapura é emblemático. Considerada uma das cidades mais avançadas em termos de tecnologia urbana, seu governo implementou um sistema de vigilância abrangente com sensores que monitoram a qualidade do ar, o tráfego e o comportamento dos cidadãos.
Embora essa infraestrutura tenha permitido uma gestão eficiente dos recursos, ela também gerou críticas pelo alto nível de controle estatal sobre a população.
Outro caso interessante é o de Barcelona, que adotou uma abordagem mais focada na soberania de dados.
Por meio do projeto DECODE, a cidade desenvolveu uma infraestrutura que permite aos cidadãos decidir quais informações compartilham e com quem. Essa iniciativa busca equilibrar a eficiência tecnológica com o direito à privacidade, oferecendo um modelo alternativo ao controle centralizado de dados.
Por outro lado, em cidades como São Francisco, o uso do reconhecimento facial em espaços públicos foi proibido em 2019 devido a preocupações com os direitos civis.
Esse movimento reflete a crescente conscientização sobre os perigos da vigilância descontrolada, em um contexto em que os dados se tornaram um ativo mais valioso do que o petróleo.
Em conclusão
As cidades inteligentes representam o futuro da vida urbana, mas também apresentam dilemas profundos sobre privacidade e controle de informações. A proteção do Big Data não é apenas uma questão tecnológica, mas um desafio ético e regulatório que exige um equilíbrio entre inovação e direitos fundamentais.
Em um mundo onde dados são poder, a questão-chave permanece: quem tem o direito de decidir sobre nossas informações?