China exige diplomas de influenciadores e reacende debate global

Uma nova medida acaba de acender um debate global: a China proíbe qualquer influenciador ou criador de conteúdo de postar sobre saúde, direito, educação ou finanças sem um credenciamento profissional válido.

Desde outubro de 2025, plataformas como Douyin, Weibo e Bilibili são obrigadas a verificar diplomas e licenças universitárias antes que alguém opine publicamente sobre essas questões.

O compromisso da China com a filtragem da “pós-verdade”

Por: Gabriel E. Levy B.

Nas últimas duas décadas, as mídias sociais transformaram o cidadão comum em um produtor de conteúdo. O modelo tradicional de autoridade baseado em títulos, hierarquias acadêmicas e experiência profissional foi substituído por outro: o de influência, viralidade e empatia instantânea.

Para as novas gerações hiperconectadas, os conselhos médicos deixaram de vir de médicos de jaleco branco para chegar à boca de adolescentes com filtros de beleza.

As finanças pessoais passaram do escritório de contadores para investidores empíricos em criptomoedas.

A China, um país historicamente centralizado em sua gestão de informações, não era estranha a esse fenômeno.

No entanto, seu modelo de governança, fortemente regulamentado, enfrentava uma preocupação crescente: o aumento de conteúdo impreciso, perigoso ou fraudulento disfarçado de conselhos úteis.

 Nesse cenário, foi criada uma lei que exige que os influenciadores demonstrem sua formação acadêmica caso desejem falar publicamente sobre temas considerados sensíveis ou de interesse público.

A intenção declarada é proteger a população da desinformação, especialmente em áreas onde uma má recomendação pode ter consequências irreversíveis.

A decisão do governo chinês não surgiu do nada.

Já em 2020, foram impostas restrições para transmissões ao vivo sobre medicina ou direito, embora sem o nível atual de exigência documental.

O que é novo, agora, é o grau de supervisão que as plataformas devem aplicar.

Se um influenciador sem título der conselhos sobre ansiedade ou educação infantil, ele poderá enfrentar multas, suspensão de sua conta ou exclusão permanente.

E em uma sociedade onde as normas digitais estão longe de ser simbólicas, a mudança está começando a ter efeitos imediatos.

“Nem toda opinião é conhecimento: conhecimento exige responsabilidade”

O contexto desta lei não pode ser separado do ecossistema digital global.

Desde a pandemia do COVID-19, milhões de pessoas migraram para conteúdo de notícias não institucional: tutoriais, tópicos explicativos, análises econômicas no TikTok ou diagnósticos expressos no Instagram.

Essa tendência trouxe consigo um fenômeno paradoxal: maior acesso à informação e, ao mesmo tempo, maior exposição à desinformação.

Autores como Lee McIntyre, em seu livro Post-Truth, explicam como a verdade objetiva perdeu relevância diante do emocional e do viral.

De acordo com McIntyre, a negação dos fatos tornou-se uma estratégia política e cultural, e não um erro individual.

Nesse ambiente, os influenciadores preencheram o vazio deixado pela mídia tradicional e figuras profissionais, criando uma nova hierarquia de credibilidade que não se baseia em títulos, mas em seguidores.

A China agora está respondendo com uma política que tenta conter essa tendência.

De acordo com a nova regulamentação, não basta ter visibilidade para falar em saúde mental ou investimentos; É necessário um suporte verificável.

Essa medida apresenta um profundo dilema: proteger o público implica limitar a liberdade de expressão? Ou melhor, para restaurar o conhecimento ao seu lugar de origem?

A pesquisadora Zeynep Tufekci, em sua análise de tecnologia e poder, argumenta que as plataformas digitais moldam não apenas o consumo de informações, mas também a maneira como interpretamos o mundo.

Nesse sentido, não regular o conteúdo é permitir que o algoritmo recompense o emocional sobre o verdadeiro.

Desse ponto de vista, a lei chinesa, embora controversa, busca intervir nesse circuito perverso.

O cenário chinês também reflete um modelo político que prioriza a ordem sobre a espontaneidade.

Mas não é apenas uma questão de censura, mas de uma tentativa de re-hierarquizar o conhecimento em uma época em que qualquer um pode dizer qualquer coisa com autoridade emprestada.

E onde um erro não corrigido pode se tornar viral em minutos.

“O algoritmo não distingue entre conselhos e consequências”

Vários casos recentes ilustram a gravidade do problema.

Em 2023, um influenciador de Xangai com mais de 2 milhões de seguidores promoveu um suplemento de ervas como uma “cura natural” para a ansiedade.

Apesar das advertências médicas, seu vídeo circulou amplamente e foi replicado por outros criadores.

Pelo menos três pessoas relataram efeitos colaterais graves após seguir sua recomendação.

A conta do influenciador foi suspensa, mas o conteúdo já havia sido baixado, compartilhado e adaptado por outras pessoas.

No campo financeiro, um jovem de Pequim com formação autodidata espalhou conselhos para investir em criptomoedas em meio à crise do yuan digital.

Usando linguagem sedutora e ferramentas visuais, ele encorajou milhares de seguidores a comprar tokens sem respaldo legal.

Semanas depois, vários relataram perdas de até 80% de seus investimentos. Nenhuma autoridade poderia responsabilizá-lo formalmente: ele não cobrava por seus conselhos, mas sua influência agia como um conselho implícito.

Também houve casos alarmantes na educação.

Um criador popular em Bilibili espalhou teorias pedagógicas sem apoio acadêmico, promovendo a rejeição da educação formal e propondo “ensino baseado na intuição”.

Seus vídeos foram seguidos por jovens pais que começaram a desescolarizar seus filhos. O Ministério da Educação emitiu um alerta público, mas o estrago já havia sido feito.

Esses episódios não são exceção.

Eles fazem parte de uma tendência global em que a desregulamentação da informação permite que qualquer pessoa, sem treinamento ou experiência, se torne uma fonte de orientação para milhares.

A regulamentação chinesa, nesse contexto, não aparece como um capricho autoritário, mas como uma resposta estrutural a um problema real: a ausência de fronteiras entre opinião e autoridade.

Um modelo com luzes e sombras

Na América Latina e em grande parte do mundo, a proliferação de conteúdo sem apoio profissional nas redes sociais representa um dilema urgente: como equilibrar a liberdade de expressão com a responsabilidade da informação?

Embora o direito de expressar uma opinião deva ser salvaguardado como um princípio democrático inalienável, não pode ser confundido com o direito de desinformar.

A experiência chinesa, embora extrema em seu modelo de aplicação, oferece um alerta útil: quando o discurso especializado circula sem filtro, o risco não é mais apenas ideológico, mas de saúde, financeiro e educacional.

A América Latina, com seus altos níveis de desconfiança institucional e intensa dependência das redes como sua principal fonte de informação, enfrenta um terreno especialmente fértil para a desinformação disfarçada de aconselhamento.

Não se trata de censurar a voz dos cidadãos, mas de exigir que aqueles que influenciam massivamente questões sensíveis o façam com um mínimo de preparação demonstrável.

Assim como praticar medicina sem licença não é permitido, não deveria ser tolerado que a ansiedade seja diagnosticada em um TikTok ou investimentos sem treinamento sejam recomendados?

A liberdade de expressão não desaparece quando é regulamentada, mas quando perde o sentido diante de uma maré de declarações que não respondem a nenhuma evidência ou assumem a responsabilidade por suas consequências.

A indústria da desinformação

A desinformação deixou de ser um erro isolado ou um descuido editorial para se tornar uma máquina bem lubrificada para fins políticos e comerciais. Como o jornalista Mark Fisher revelou em sua investigação The Dark Business of Disinformation on Demand, publicado no New York Times, hoje existe um verdadeiro ecossistema global que vende falsidades pelo lance mais alto.

Em seu relatório, Fisher narra como, em 2021, uma suposta agência de relações públicas ofereceu aos influenciadores europeus somas significativas de dinheiro para espalhar mensagens contra a vacina Pfizer-BioNTech, usando documentos meticulosamente redigidos.

Enquanto alguns rejeitaram a proposta e a denunciaram publicamente, outros em países como Brasil e Índia reproduziram as mensagens com precisão cirúrgica.

 Essa prática, longe de ser marginal, responde ao que o próprio Fisher descreve como “uma indústria hermética cuja escala está crescendo”: empresas privadas que antes operavam apenas no marketing tradicional agora se aventuram no campo da manipulação geopolítica, usando as redes sociais para semear discórdia, interferir em processos eleitorais e promover teorias da conspiração.

O apelo aos clientes é claro: essas empresas oferecem influência sem deixar pegadas. Graham Brookie, do Laboratório de Pesquisa Forense Digital do Atlantic Council, confirmou que vários governos já contratam esses serviços sistematicamente.

Em países como Índia, Egito, Bolívia ou Venezuela, a desinformação não vem apenas de setores radicais, mas das próprias estruturas governamentais. De acordo com um estudo da Universidade de Oxford citado por Fisher, em 2020 pelo menos 65 empresas operaram campanhas de manipulação em 48 países.

Na Bolívia, por exemplo, uma rede de desinformação ligada a grupos pró-governo foi desmantelada, enquanto investigadores de Stanford vincularam operações semelhantes na Venezuela e no México à empresa norte-americana CLS Strategies.

O mais preocupante é que essa estratégia não se limita às campanhas eleitorais: muitos líderes populistas institucionalizam essas práticas quando chegam ao poder.

O caso da Índia é paradigmático, onde contas oficiais do governo divulgaram mensagens de supostos meios de verificação que, na verdade, pertencem a uma empresa privada dedicada a fabricar notícias favoráveis ao primeiro-ministro Narendra Modi.

Essa tendência revela um padrão preocupante: a desinformação não busca apenas influenciar o presente político, mas moldar a própria realidade, tornando-se uma nova forma de governar.

Nesse cenário, o caso Cambridge Analytica não foi exceção, mas o primeiro capítulo de uma era em que as liberdades civis e a verdade factual correm o risco de serem sacrificadas em nome da conveniência política e do controle narrativo.

Em conclusão

A China se torna o primeiro país a exigir credenciamento profissional para falar publicamente sobre tópicos sensíveis nas mídias sociais.

A desinformação não é mais um acidente do ecossistema digital, mas um modelo de negócios estruturado, transnacional e cada vez mais sofisticado.

De operações secretas que usam influenciadores como porta-vozes camuflados, a estratégias oficiais do governo que institucionalizam a mentira como forma de gestão pública, o fenômeno cresceu em escala e aparente legitimidade. Nesta nova ordem, a manipulação de informações é vendida como um serviço e consumida como conteúdo.

Diante disso, regular não significa reprimir a liberdade de expressão, mas protegê-la de sua degradação. Países como a China, embora com métodos questionáveis, já estão estabelecendo uma tendência global: exigir credenciamento profissional não é censura, mas uma forma de restaurar o conhecimento ao seu peso diante do espetáculo da opinião infundada.

A América Latina deve tomar nota.

Em uma região onde a informação circula sem filtros e as instituições são frágeis, a indústria da desinformação representa um risco real para a democracia, a saúde pública e a coesão social. Ignorá-lo é render-se à pós-verdade como forma de governo.

Referências e Citações

Brookie, G. (2025, 14 de outubro). Declarações citadas em Fisher, M. O negócio sombrio da desinformação sob demanda. O jornal New York Times. Atlantic Council, Laboratório de Pesquisa Forense Digital.

Fisher, M. (2025, 14 de outubro). O negócio sombrio da desinformação sob demanda. O jornal New York Times. Obtido de https://www.nytimes.com/2025/10/14/desinformacion-por-encargo.html

McIntyre, L. (2018). Pós-verdade. Cambridge, MA: MIT Press.

Tufekci, Z. (2017). Twitter e gás lacrimogêneo: o poder e a fragilidade do protesto em rede. New Haven, CT: Imprensa da Universidade de Yale.

Universidade de Oxford. (2020). A Ordem Global de Desinformação: Inventário Global de Manipulação Organizada de Mídia Social de 2020. Instituto de Internet de Oxford.

Observatório da Internet de Stanford. (2023). Investigação sobre estratégias de CLS e comportamento inautêntico coordenado na América Latina. Universidade de Stanford.

Marca. (2025, 22 de outubro). Adeus aos ‘especialistas’ sem estudos: a China exigirá diplomas…. Obtido em https://www.marca.com/tecnologia/2025/10/22/adios-expertos-estudios-china-exigira-titulos-influencers-hablen-salud-economia.html

WRadio. (2025, 17 de outubro). Influenciadores na China serão multados se não verificarem…. Obtido de https://wradio.com.mx/2025/10/17/influencers-en-china-seran-multados-si-no-comprueban-con-titulo-profesional-sus-estudios-para-hablar-en-redes-sociales/

Marketing4eCommerce. (2025, outubro). A China exigirá que os influenciadores credenciem o treinamento…. Obtido em https://marketing4ecommerce.net/china-influencers-formacion/

Citação direta. (2025, outubro). China exige que influenciadores de mídia social tenham… Obtido em https://citadirecta.com.ar/noticias/china-exige-que-los-influencers-de-las-redes-sociales-tengan-un-certificado-de-habilidades-antes-de-crear-contenido/66459/

Mundo Global. (2025, outubro). Regulamentou na China o papel dos influenciadores para garantir a veracidade do conteúdo de mídia social. Obtido de https://mundoglobal.org/regulado-en-china-el-papel-de-los-influencers-para-garantizar-la-veracidad-del-contenido-de-las-redes-sociales/