A mistura explosiva de IA e economia de emoções

Recentemente, foi noticiado que  a Delta Air Lines estava explorando um modelo de inteligência artificial capaz de ajustar os preços das passagens aéreas de acordo com o motivo da viagem de cada passageiro.

A ideia era inquietante: um algoritmo poderia cobrar mais daqueles que voaram em uma emergência pela morte de um membro da família do que daqueles que viajaram de férias. O que parecia ser uma estratégia de negócios eficiente provocou um debate sobre privacidade, dignidade e os limites éticos do comércio digital.

O conceito de perigo da Economia das Emoções

Por: Gabriel E. Levy B

Durante décadas, a inteligência artificial foi imaginada como um mecanismo para libertar os seres humanos de tarefas repetitivas e abrir novas possibilidades criativas.

Marvin Minsky, um pioneiro do MIT, escreveu na década de 1970 que máquinas inteligentes tornariam possível “expandir a mente humana em territórios ainda desconhecidos”.

O otimismo da época marcou o início de uma história cheia de promessas de eficiência e progresso.

No entanto, paralelamente a essa narrativa tecnológica, surgiu um conceito fundamental para entender o presente: “a economia das emoções”.

Esse termo, trabalhado por autores como Eva Illouz, descreve a maneira pela qual sentimentos, paixões e experiências afetivas deixam de ser esferas íntimas para se tornarem recursos econômicos: amor, tristeza, ansiedade ou luto são administrados, regulados e transformados em mercadoria por um mercado que aprendeu a capitalizar o humor das pessoas.

A combinação dessa economia de emoções com inteligência artificial é explosiva.

O que começou com algoritmos de busca e mecanismos de recomendação logo se transformou em sistemas capazes de rastrear emoções, preferências e estados de vulnerabilidade com um nível de precisão sem precedentes.

Na esfera empresarial, gigantes da tecnologia e companhias aéreas como a Delta Air Lines já estão explorando a possibilidade de usar inteligência artificial para definir preços de acordo com o perfil emocional dos passageiros.

Não se trata apenas de medir a disposição de pagar, mas de mergulhar nos momentos mais delicados da vida: um viajante que comprou uma passagem para assistir a um funeral pode pagar mais do que alguém que comprou a mesma rota para férias.

Tristeza ou urgência se traduz em oportunidades de lucratividade.

Esses tipos de aplicações não são simples hipóteses futuristas.

Eles representam a maneira como os sistemas de IA aprendem a explorar nossas fraquezas humanas em benefício do mercado, integrando as emoções como novas variáveis econômicas.

O que antes era apresentado como neutralidade algorítmica agora se transforma em um cenário cheio de dilemas éticos, onde a fronteira entre eficiência e abuso é cada vez mais tênue.

A economia das emoções, alimentada pela inteligência artificial, deixa de ser um fenômeno cultural ou acadêmico para se tornar o cerne das práticas empresariais contemporâneas: um laboratório de manipulação onde o sofrimento, a urgência e a alegria são insumos calculados por máquinas que decidem quanto vale nossa experiência humana.

Inteligência artificial na economia das emoções

Eva Illouz, em A Salvação da Alma Moderna (2010), explica que o capitalismo contemporâneo não se baseia apenas em bens materiais, mas também na mercantilização da experiência emocional.

Dor, ansiedade ou alegria tornam-se variáveis que determinam como, quando e quanto consumimos.

Nesse sentido, o caso da Delta Air Lines revela como a IA pode ser inserida na economia das emoções para transformar o sofrimento em um recurso de lucratividade.

O algoritmo não analisa simplesmente os dados frios de oferta e demanda; Interprete a carga emocional do momento para definir um preço que maximize a receita. L

ou que antes era uma passagem aérea agora se transforma em um produto ajustado à vulnerabilidade emocional do passageiro.

Outro autor importante, Antonio Damasio, em Descartes’ Error (1994), argumenta que as emoções estão no centro de todas as tomadas de decisão humanas.

Se as empresas souberem disso e a IA for capaz de detectar esses estados emocionais por meio de padrões de comportamento digital, a mercantilização da emoção deixa de ser abstrata e se torna uma operação concreta: aproveitar o medo, a urgência ou a tristeza como insumos econômicos.

O apelo inicial da IA como ferramenta de personalização torna-se, aos poucos, um mecanismo de controle invisível.

Na economia das emoções, o consumidor não apenas adquire um serviço; ele, sem saber, oferece sua intimidade afetiva como matéria-prima para a lucratividade do mercado.

Algoritmos como dispositivos de poder emocional

A questão central é se o abuso da inteligência artificial constitui uma simples distorção do mercado ou uma forma renovada de dominação emocional.

Byung-Chul Han, em Psychopolitics (2014), alerta que as tecnologias digitais não reprimem diretamente, mas moldam desejos e decisões a partir de dentro, sob o pretexto da liberdade.

O usuário acredita que escolhe, quando na realidade ele responde a um condicionamento afetivo cuidadosamente projetado.

O problema é agravado na medida em que as emoções se tornam uma mercadoria. Na economia emocional, um algoritmo que sabe que alguém perdeu um membro da família não vê um drama humano, mas uma oportunidade de renda.

Essa redução instrumental da experiência subjetiva constitui uma nova forma de violência simbólica.

Este não é um caso isolado. O microtargeting político durante o Brexit ou as eleições americanas de 2016 mostrou como a manipulação emocional se tornou uma estratégia central: mensagens destinadas a gerar medo, indignação ou euforia eleitoral de acordo com o perfil psicológico de cada eleitor.

A IA não apenas previu humores, mas os exacerbou para moldar decisões coletivas.

O risco real está na opacidade do sistema. Ao contrário da interação humana, que pode ser questionada, o algoritmo é apresentado como neutro, técnico, incontestável.

Assim, as emoções deixam de ser patrimônio do indivíduo para se tornarem um terreno explorado pelas corporações sob uma lógica de poder algorítmico.

O pano de fundo da economia emocional algorítmica

Os abusos derivados da economia emocional mediada pela IA já deixaram rastros visíveis em diferentes setores.

Um dos casos mais polêmicos ocorreu em 2019, quando o Apple Card concedeu limites de crédito significativamente mais baixos para mulheres do que para homens com perfis financeiros semelhantes.

O algoritmo não discriminou apenas por dados econômicos, mas incorporou vieses que replicaram desigualdades estruturais.

Nos termos de Illouz, o gênero tornou-se uma variável emocional e simbólica traduzida em desigualdade financeira.

Outro caso ocorreu na Holanda com o sistema SyRI, que buscava detectar fraudes em benefícios sociais.

Lá, bairros inteiros foram classificados como “alto risco” com base em variáveis que misturavam condição econômica com preconceitos culturais.

O impacto foi devastador: comunidades estigmatizadas sob um manto algorítmico que tratava a vulnerabilidade social como uma ameaça.

Nos Estados Unidos, softwares preditivos como o PredPol reforçaram a criminalização das comunidades afro-americanas e latinas.

O algoritmo, alimentado por dados históricos de prisões, atribuiu maior vigilância policial a esses bairros, gerando um ciclo de medo e desconfiança.

Aqui a emoção coletiva, o medo da insegurança, foi instrumentalizado como um recurso político e operacional.

Mesmo no campo educacional, durante a pandemia, os sistemas de vigilância remota acusaram os alunos de fraude por simples movimentos de cabeça. A angústia e a ansiedade geradas tornaram-se subprodutos de um modelo de controle baseado na suspeita algorítmica.

Cada um desses casos revela como a economia emocional se desdobra em vários níveis: gênero, pobreza, segurança, educação. Todos eles se traduzem no mesmo padrão: a captura de emoções por sistemas que as transformam em oportunidades de controle e benefício econômico.

Em conclusão, o uso abusivo da inteligência artificial não apenas altera a dinâmica econômica tradicional, mas também aprofunda a lógica da economia das emoções.

Como Illouz e Damásio apontaram, nossas decisões nunca são puramente racionais, elas sempre passam por uma estrutura emocional.

O perturbador é que agora essas emoções são detectadas, classificadas e exploradas por algoritmos opacos que as transformam em mercadoria.

O desafio contemporâneo não é apenas regular preços ou proteger dados, mas defender o direito de que nossas emoções não se tornem apenas mais um insumo no mercado digital.

Referências citadas

  1. Minsky, Marvin
    • A Sociedade da Mente. Simon & Schuster, 1986.
      (Referência ao pioneiro do MIT que imaginou a expansão da mente humana graças a máquinas inteligentes.)
  2. Zuboff, Shoshana
    • A era do capitalismo de vigilância. Relações Públicas, 2019.
      (Sobre como as tecnologias digitais transformam o comportamento humano em matéria-prima para a economia de dados).
  3. Han, Byung-Chul
    • Psicopolítica: Neoliberalismo e Novas Técnicas de Poder. Herder, 2014.
      (Sobre como as tecnologias digitais moldam desejos e emoções sob o disfarce de liberdade.)
  4. Illouz, Eva
    • A Salvação da Alma Moderna: Terapia, Emoções e a Cultura da Autoajuda. Katz Editores, 2010.
      (Base teórica do conceito de economia das emoções e mercantilização dos sentimentos.)
  5. Damásio, Antônio
    • Erro de Descartes: Emoção, Razão e o Cérebro Humano. Putnam, 1994.
      (Sobre a centralidade das emoções na tomada de decisão humana.)
  1. Insider de negócios. “A reação de preços de IA da Delta mostra que as empresas na corda bamba caminham com a adoção da IA.” 6 de agosto de 2025.
  2. A beira. “A Delta está testando um modelo de precificação dinâmica com inteligência artificial para voos.” 7 de agosto de 2025.