Sabores que decidem: soberania gastronômica na cidade inteligente

As cidades que aspiram a ser inteligentes não devem pensar apenas em sensores, mobilidade elétrica ou big data.

Há uma inteligência menos barulhenta, mas vital, que fervilha nos mercados, nas hortas urbanas e nas cozinhas comunitárias: a soberania gastronômica.

Esse conceito, intimamente ligado à soberania alimentar, desafia os sistemas urbanos sobre quem decide o que é consumido, como é produzido e qual é o papel da comunidade no controle de seus alimentos.

Sem soberania alimentar não há identidade

Por: Gabriel E. Levy B.

Quando a Via Campesina introduziu o conceito de soberania alimentar durante a Cúpula Mundial da Alimentação em 1996, o termo parecia estar limitado ao mundo rural.

No entanto, com o avanço da urbanização e da crise climática, a noção se transformou e migrou para o urbano, onde hoje se configura como “soberania gastronômica”: uma forma de defender a cultura, a saúde e a autonomia das cidades a partir de seus pratos.

Autores como Marion Nestlé, em Food Politics (2002), e Carlo Petrini, fundador do Slow Food, alertaram que o controle do sistema alimentar não pode estar nas mãos exclusivas de grandes conglomerados agroindustriais.

Petrini escreveu que “comer é um ato agrícola” e, nas cidades onde a desconexão com a terra é quase absoluta, recuperar essa consciência representa um ato político.

Nas últimas décadas, os territórios urbanos começaram a pensar na alimentação para além do consumo.

O crescimento das hortas urbanas, dos mercados locais, das cozinhas comunitárias e das políticas públicas alimentares mostram que a soberania gastronómica é também uma forma de resistir à uniformização e ao anonimato dos alimentos impostos pela globalização.

“Alimentar a cidade é governá-la”

Uma cidade não pode ser chamada de inteligente se não garantir o direito a uma alimentação saudável, culturalmente apropriada e sustentável.

Sob essa premissa, foram desenvolvidas políticas e movimentos que entendem a alimentação como uma infraestrutura tão essencial quanto o transporte ou a energia.

O relatório Cidades e Governos Locais no Centro da Transformação dos Sistemas Alimentares, publicado pelo Pacto de Política Alimentar Urbana de Milão, afirma que

“As políticas alimentares locais são fundamentais para alcançar sistemas urbanos resilientes e sustentáveis.” Pacto de Política Alimentar Urbana de Milão

Alerta que muitas cidades estão a assumir um papel ativo na definição da sua relação com a alimentação, apostando em circuitos curtos de comercialização, na proteção das cozinhas tradicionais e na promoção de modelos agrícolas urbanos.

A cidade inteligente não é apenas um território cheio de dispositivos interconectados. É um ecossistema que pensa em seus recursos de forma estratégica, respeitosa com o meio ambiente e alinhada aos direitos humanos.

Nesse sentido, a soberania gastronômica torna-se central.

Não só porque permite fortalecer as economias locais, mas também porque promove um conhecimento profundo do meio ambiente e das culturas que o habitam.

O urbanista brasileiro Raúl Pont, ex-prefeito de Porto Alegre, disse que “uma cidade democrática é aquela em que o orçamento e as decisões são elaborados com a comunidade”.

Nesse sentido, pensar sobre o que e como comemos faz parte de um exercício democrático que a tecnologia, por si só, não pode garantir.

Cidades que investem em refeitórios, incentivos à agroecologia urbana e educação alimentar estão construindo uma inteligência que não depende apenas de algoritmos, mas de saberes ancestrais, relações de confiança e sustentabilidade concreta.

“Soberania gastronômica também é identidade”

Pensar na soberania gastronômica implica entender que a alimentação não é apenas uma necessidade fisiológica.

É uma expressão cultural, um ato simbólico e uma ferramenta de resistência.

Em muitas cidades, as políticas alimentares foram elaboradas sob modelos tecnocráticos, onde a eficiência superava a diversidade.

Mas o que torna uma cidade inteligente forte não é apenas sua infraestrutura digital, mas sua capacidade de proteger o que a torna única.

A padronização alimentar, promovida por redes de supermercados, plataformas digitais e franquias globais, ameaça diluir as particularidades culinárias locais.

Diante disso, iniciativas como as “cidades do bem viver” no Equador ou as redes de consumo responsável na Espanha estão mostrando caminhos diferentes: onde os ingredientes são cultivados nas proximidades, os alimentos são preparados com identidade e os cidadãos participam ativamente da tomada de decisões.

Autores como Vandana Shiva, em sua obra Quem realmente alimenta o mundo?, argumentam que “o controle do sistema alimentar global é baseado na extração de valor das comunidades locais”.

Desse ponto de vista, a soberania gastronômica torna-se uma ferramenta de defesa territorial, onde a alimentação nutre não apenas o corpo, mas também o tecido social.

Cidades como Rosário (Argentina), Belo Horizonte (Brasil), Medellín (Colômbia) ou Barcelona (Espanha) implementaram políticas em que os alimentos são tratados como uma questão de justiça social e ambiental.

 De bancos de sementes nativas a mercados de troca e plataformas digitais de rastreabilidade de alimentos, essas cidades mostram que a tecnologia pode estar a serviço da soberania, e não o contrário.

“Da terra ao algoritmo: casos que cozinham o futuro”

Em Belo Horizonte, desde 1993, foi implantado o Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional, garantindo o acesso a alimentos saudáveis e baratos a mais de um milhão de habitantes.

Sua estratégia, reconhecida pela FAO, incluía a criação de restaurantes populares, apoio direto aos pequenos produtores e controle de preços nos mercados.

Rosário, por sua vez, integrou a agricultura urbana como política pública desde 2001, após uma forte crise econômica.

Hoje, possui mais de 24 hectares de hortas agroecológicas que abastecem milhares de famílias, aliando capacitação, emprego verde e produção de alimentos saudáveis.

Em Barcelona, o Plano Estratégico para a Alimentação Sustentável 2030 articula atores públicos e privados para transformar o sistema alimentar a partir de uma perspectiva ecossocial.

De plataformas para conectar produtores locais com consumidores a feiras gastronômicas dedicadas à culinária migrante, a cidade se posiciona como um laboratório de soberania urbana.

Na Colômbia, Medellín desenvolveu seu “Plano de Segurança Alimentar e Nutricional” com foco na economia circular e na participação cidadã.

Aqui, são promovidos mercados de agricultores itinerantes, treinamento nutricional para mães chefes de família e curtos-circuitos que reduzem a pegada de carbono.

Mesmo em cidades de alto desenvolvimento tecnológico como Toronto ou Amsterdã, a discussão sobre soberania gastronômica começou a permear a agenda urbana.

Em Toronto, por exemplo, a organização “FoodShare” gerencia hortas comunitárias e programas de merenda escolar que buscam fortalecer o acesso equitativo a alimentos frescos.

Em Amsterdã, a estratégia de “economia alimentar circular” está comprometida com o reaproveitamento de resíduos alimentares, recuperando espaços urbanos para plantio e usando tecnologia para fortalecer cadeias curtas.

Esses exemplos mostram que a soberania gastronômica não é uma utopia rural ou um luxo gourmet.

É uma estratégia inteligente para enfrentar os desafios das cidades contemporâneas: mudanças climáticas, desigualdade, perda de biodiversidade e desconexão cultural.

Em conclusão

Uma cidade inteligente não pode delegar seu poder a algoritmos ou depender exclusivamente de importações massivas. A soberania gastronômica permite que as decisões sobre o que e como ser consumido voltem para as mãos das comunidades, devolvendo sentido, identidade e resiliência aos territórios urbanos. Não se trata de romantizar o passado, mas de pensar o futuro com os pés e as mãos no chão.

Referências:

  • Nestlé, Marion. Política alimentar: como a indústria de alimentos influencia a nutrição e a saúde. Imprensa da Universidade da Califórnia, 2002.
  • Petrini, Carlo. Buono, pulito e giusto. Principi di una nuova gastronomia. Slow Food Editore, 2005.
  • Shiva, Vandana. Quem realmente alimenta o mundo? Editorial Icaria, 2017.
  • Pacto de Política Alimentar Urbana de Milão. Cidades e governos locais no centro da transformação dos sistemas alimentares. 2020.
  • Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Boas Práticas na Cidade de Belo Horizonte. 2018.